Muitos anos depois do David Ogilvy criar fama, e alguns anos antes do David Droga deitar na cama, a publicidade mundial viveu seu período mais brilhante: a década de 1980.
Naqueles anos, publicitários de diferentes partes do mundo geravam trabalhos de alta voltagem criativa, e três países se destacavam pela sua “excellence in advertising”, expressão muito usada pelos que analisavam além da qualidade criativa, a pertinência das mensagens e os resultados de mercado obtidos por elas.
Os três países que se destacavam nos anos 1980 pela sua “excellence in advertising”, eram os EUA que já possuíam a reputação de matriz da publicidade mundial, desde a revolução criativa, ocorrida na geração dos “Mad Men”. A Inglaterra, que sofreu a influência dessa revolução norte-americana, logo depois que ela aconteceu. E o Brasil, que tropicalizou as influências norte-americanas e inglesas, e começou a ficar mundialmente conhecido nos anos 1970, através de premiações como o Clio e o Festival de Cannes, que na época eram extremamente seletivas, criteriosas e outorgavam pouquíssimos prêmios.
Agora que chegamos em 2020, eu que vivo em Londres desde 2016, e que além do distanciamento geográfico e da proximidade afetiva, mantenho também um distanciamento crítico em relação ao Brasil e à minha atividade, me sinto à vontade para comentar o que aconteceu de parecido e de diferente com a publicidade brasileira e a publicidade inglesa, desde os anos dourados de 1980, até hoje.
Nos anos 1980, os ingleses tinham brilhantes criadores e condições de produção excepcionais. Seus trabalhos possuíam grandes ideias e realizações impecáveis. Tinham craft quando ainda não se falava em craft. Esse era o grande diferencial deles.
Nos anos 1980, os brasileiros possuíam brilhantes criadores e condições de produção precárias. Mas transformaram aquele limão, numa caipirinha.
Para driblar as condições de produção precárias, aprenderam a pensar simples e como o simples em publicidade é sempre melhor, a simplicidade virou uma marca registrada da publicidade brasileira, que ficou mundialmente conhecida e admirada por essa característica.
Nos anos 1980, as agências inglesas já eram extremamente profissionais, sabiam cobrar pelo seu trabalho, não faziam concessões negociais e jamais participavam de concorrências.
Nos anos 1980, as agências brasileiras eram protegidas pela Lei 4.680 que regulamentava os comissionamentos, as concorrências, praticamente não existiam e, as relações de respeito mútuo entre agências e anunciantes, eram tão grandes, que criaram além de inúmeros cases de sucesso, diversas amizades sólidas e duradouras, entre donos de empresas e publicitários.
Nos anos 1980, a mídia inglesa em geral (jornal, rádio, revista, outdoor, televisão) já era de altíssima qualidade, mas as agências inglesas não faziam os planos de mídia dos seus clientes, que eram feitos pelas centrais de mídia, na verdade bancos que ganhavam dinheiro comprando e vendendo espaços nos veículos de comunicação. Com o passar do tempo essas centrais de mídia foram ficando cada vez mais poderosas, tanto na Europa, quanto na Ásia, na Ibero-América e nos EUA. Uma pena.
Nos anos 1980, o Brasil já possuía o profissionalismo de veículos de comunicação como a Rede Globo e a Editora Abril – que foram fundamentais para o desenvolvimento da publicidade brasileira – e as agências tinham departamentos de mídia completos, altamente profissionais, com equipes que envolviam de planejadores a executores, todos preparados para escolher criteriosamente os veículos a serem utilizados. Esses departamentos de mídia das agências brasileiras, foram celebrados no mundo inteiro como exemplos de competência e seriedade. Mas, lamentavelmente, não viraram produto de exportação.
Nos anos 1990 as coisas começaram a mudar. Enquanto os ingleses se mantiveram ingleses, os brasileiros foram se “espanholizando” ou se “argentinizando”. Não no sentido daquilo que os nossos hermanos de fala espanhola tem de melhor culturalmente, que são a gastronomia, as artes, o futebol, a música e a literatura. Mas no sentido das famosas trampas que eles inventaram para ganhar prêmios em festivais de publicidade, gesto bastante pobre, para oriundos de povos culturalmente tão ricos.
Assim, seguindo esses maus exemplos, alguns profissionais brasileiros, começaram a fazer publicidade só para ganhar festivais. Alguns até ganharam vários prêmios, mas não ganharam nenhum respeito profissional. Apenas começaram a afastar o Brasil do primeiro time da publicidade mundial.
Também motivadas pela ilusão dos prêmios, algumas agências brasileiras começaram a criar agências dentro das próprias agências. Equipes inteiras trabalhando 24 horas por dia para criar publicidade para festivais. Na maioria das vezes, para causas pseudosociais; outras vezes para clientes insignificantes ou inexistentes. O intuito dessa trabalheira sem sentido, sempre foi gerar um enorme número de peças com condições de ganhar prêmios num festival que depois de 1995 passou a distribuir prêmios em quantidades industriais. E assim conquistar o título de “Agência do Ano, em Cannes”.
Quanta ingenuidade!
Imaginar que algum anunciante de nível e porte valorize uma agência, só porque numa situação artificial ela foi eleita a melhor agência do mundo, da terceira semana de junho na Cote D’Azur, é coisa de bobo ou maluco.
Grandes anunciantes não funcionam assim. Grandes anunciantes querem a melhor agência do mundo de todas as semanas. De todos os meses. De todos os lugares. De todos os anos.
Por outro lado, os ingleses não caíram nessa armadilha do prêmio pelo prêmio. Se mantiveram participando dos festivais com absoluta parcimônia. Até mesmo um pouco blasés. Sem exagerar no número de inscrições, submetendo apenas trabalhos conhecidos e já reconhecidos nas premiações inglesas, que acabam até por consequência, sendo também premiados nos festivais internacionais porque obviamente merecem ser premiados. Quem não é capaz de reconhecer que o filme de natal do Magazine John Lewis sobre o primeiro piano do Elton John deveria ter ganho o Leão de Ouro que ganhou em Cannes no ano de 2019?
Outra armadilha em que os ingleses não caíram, foi a das remunerações.
Continuaram cobrando e bem pelo seu trabalho, ao contrário de muitas agências brasileiras que na busca desesperada de se implantar e conseguir clientes começaram a partir dos anos 1990, a abrir mão de sua remuneração, trilhando um caminho sem volta que acabou prejudicando a elas e a todo o mercado. Isso provocou inclusive o surgimento de um número gigantesco de concorrências, a maior parte delas absolutamente descabidas, de carácter meramente especulativo, promovidas por consultores oportunistas e anunciantes desrespeitosos, na maioria das vezes buscando baixar ainda mais a remuneração das agências, e outras vezes com a espúria intenção de ouvir ideias de diferentes talentos, sem pagar nada por isso.
Ainda no capítulo diferenças que aconteceram nos últimos anos entre as outrora igualmente prestigiadas e bem-sucedidas publicidade inglesa e brasileira, temos como exemplo mais dramático a implantação do mundo digital e pós digital.
Desde o surgimento das mídias digitais (em 1994), os ingleses perceberam que essas mídias além de fascinantes, seriam irreversíveis e fundamentais para a boa comunicação. Às vezes como opção principal, às vezes como complemento, às vezes como elemento de integração. Analisaram com inteligência a exuberância dessas novas e instigantes possibilidades do universo das métricas e dos dados, mas tiveram a sensibilidade de perceber também, que o surgimento de algo de novo, por mais fabuloso que seja, não elimina o que há de bom já existente. E que não basta apenas quantificar e mensurar; é fundamental persuadir e seduzir.
Assim os ingleses tiveram a sabedoria de integrar mídias analógicas e digitais naturalmente. Não existem agências nem anunciantes na Inglaterra que não tenham um trabalho absolutamente integrado.
Por outro lado, no Brasil, depois do surgimento dos digitais estabeleceu-se uma espécie de luta de classes entre onlines e offlines, antigos e modernos, passados e futuros. Uma luta inglória e descabida, que até agora só produziu perdedores para ambos os lados.
Foi no meio dessa luta que a Editora Abril, ícone da mídia impressa brasileira e mundial, desapareceu. E ninguém venha me dizer que é porque as revistas estão acabando no mundo inteiro, porque isso não é verdade. Na Inglaterra, por exemplo, as revistas souberam se reinventar nessa nova realidade, sem perder as suas origens. Souberam se transformar em digitais sem deixar de ser impressas. Os grandes títulos continuaram prósperos. E muitos títulos novos têm surgido.
Pra quem tiver curiosidade de verificar isso ao vivo, recomendo a visita a uma loja de Londres, especializada em novas revistas de todos os tipos e tendências. Chama-se magCulture – We love magazines – fica no número 270, da St John Street, em Clerkenwell.
Outra mídia que vai muito bem na Inglaterra é o velho e bom rádio. Foi a mídia que mais cresceu entre 2018 e 2019. Aliás, o rádio por méritos próprios, também vai bem no Brasil desses difíceis últimos anos.
E pensar que quando a televisão surgiu, muita gente dizia que o rádio ia desaparecer.
A verdade é que no negócio da comunicação, existe a seriedade negocial e administrativa que é apátrida. Vale para qualquer país, do mesmo jeito. Ou você é sério, ou não é. Não importa a sua nacionalidade.
E existe a questão da identidade cultural. Da identidade local.
Sábio quem disse que “a melhor maneira de ser absolutamente internacional é se manter totalmente local”. “Canta a tua aldeia que o mundo te ouvirá.”
Os ingleses souberam manter sua seriedade negocial e sua identidade local.
Os brasileiros perderam muito das duas coisas. Na ingênua busca de atrair mais negócios e reconhecimento, deixaram de ser brasileiros e passaram a ser coisa alguma. E deixaram também de ganhar dinheiro.
Como brasileiro que sou, me preocupo com esses dois fatos, e acredito ter algumas ideias que podem ajudar a publicidade brasileira a recuperar um pouco do seu prestígio. Não para chegar nos patamares de excelência dos anos 80, porque esses são impossíveis nos dias de hoje, inclusive para a publicidade inglesa e para publicidade norte-americana. Mas em patamares dignos em termos de prestígio criativo e resultado dos negócios.
Sugiro essas coisas, com a total isenção de quem não está no mercado brasileiro, e não pretende ganhar nada com isso, nem competir com ninguém. Na verdade, hoje em dia, só compito comigo mesmo, e normalmente perco.
Minhas sugestões:
Pra começar, a publicidade brasileira precisa voltar a falar e a escrever em português, sem a ridícula repetição de nomes de agências, de assessorias, de consultorias, e de cargos em inglês – coisa de meros colonizados – e também sem a exaustiva utilização em artigos e matérias jornalísticas de clichês e definições, sejam antigas ou recentes no idioma de Shakespeare, língua que deve ser majoritária no dia a dia da Inglaterra; não no cotidiano do Brasil.
Os publicitários brasileiros precisam falar mais a verdade, e não apenas aquilo que imaginam ou ouviram dizer que os anunciantes gostariam de ouvir.
Os publicitários brasileiros precisam prestigiar os melhores veículos, porque sem bons veículos não existe boa publicidade.
Os publicitários brasileiros precisam de clientes bons e leais e precisam ser bons e leais com esses clientes.
Os publicitários brasileiros precisam ser menos modais e deslumbrados e mais consistentes e pertinentes.
Os publicitários brasileiros precisam ser menos pretensamente modernos, se pretendem se transformar em verdadeiramente eternos.
Essas são as minhas poucas sugestões, resultado da somatória dos meus muitos anos de publicidade no Brasil, com algo de muito importante que eu aprendi morando em Londres nos últimos tempos: mais do que nunca, precisamos tomar muito cuidado com o mundo que vamos deixar para os nossos filhos. E para os Rolling Stones, é claro.
autor: Washington Olivetto / McCann Londres
fonte: artigo publicado originalmente na edição de fevereiro da Revista ESPM