Nearis Green era um ex-escravo de 20 e poucos anos que trabalhava na fazenda de Dan Call, um sujeito importante da região de Lynchburg, no Tennessee de meados do século 19. Gostava de passar os fins de tarde sentado em rodas animadas, tocando rabeca até tarde. Não era lá muito bom no instrumento, mas se esforçava nas canções que falavam da opressão e da depravação vivida por tantos como ele no campo. Também se aventurava nos spirituals, músicas de lamento e sonho de salvação que dariam origem ao blues.
Era bom contador de história, esse Green, chamado pela meninada que se ajuntava em torno dele de Tio Nearis. Um de seus personagens mais recorrentes era Davy Crockett, grande mentiroso, caçador de ursos e notório amante e bebedor. Certa vez, Crockett entornou um chifre de “Uísque Verde” que era tão quente que ele não precisou cozinhar por dois meses – fez do estômago seu fogão portátil.
Um dos jovens que curtia a companhia do Tio Green se chamava Jack. Aos 25, ele se juntou a Dan Call, que tinha campos de milho e fontes de água, para criar uma destilaria. Mais que isso, tinha Green, cuja falta de talento na rabeca era amplamente compensada no trato com o uísque. Nearis topou a empreitada, levou filhos juntos, e assim se tornou um dos primeiros funcionários da Jack Daniel’s.
Nearis foi uma das pessoas responsáveis pelo desenvolvimento do que hoje é chamado uísque do Tennessee. Ao longo dos anos, ele criou seu método empírico, com base na intuição. Peter Krass, em Sangue & Uísque, biografia de Jack Daniel (editora Imago), conta mais:
“Arrastava um saco de farinha de milho do telheiro, que escaldava e depois misturava com água numa grande chaleira. Com gotas de suor brotando da testa, explicava que a qualidade do milho é essencial. Não podia ser úmido demais nem cheirar mal; em outras palavras, não podia ser como Jack e ele. Em seguida, essa simples mistura era cozinhada no fogo e mexida com pás de madeira para evitar queimar. Uma vez que atingia uma textura de pudim, eles a despejavam nos barris de carvalho e acrescentavam malte de cevada, que contém uma enzima para converter o amido em açúcar (o Tio Nearis, provavelmente, não falava em enzimas). (…)
Quando o açúcar virava álcool, o líquido ficava turvo e borbulhava, uma coisa ao mesmo tempo assustadora e bela, que magnetizava Jack (…) Quando tiravam a tampa do barril, soltando os vapores presos, era dever do Tio Nearis advertir a Jack:
– Não fique cheirando isso! Esse troço arranca sua cabeça fora. (…)
Enquanto o uísque pingava através do carvão, Tio Nearis e Jack despejavam um pouco nos barris calcinados e um pouco em jarros, para consumo imediato. Parte da destilação choca era poupada para a fornada seguinte e o resto ia para os porcos e o gado. Essa cerveja servia como importante ração. Os velhos bebuns, que rondavam as destilarias, sempre curtiam ver os porcos cambaleando e guinchando após inalarem, gulosamente, a ração de efeito estimulante. Esse efeito estimulante era o que Dan Call e Jack Daniel queriam dar aos clientes também; o uísque deles ficaria famoso por ser meio áspero, um uísque em que se misturavam os deliciosos sabores de bordo, malte, centeio e, claro, milho.”
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Cento e cinquenta anos depois, a Jack Daniel’s segue firme na condição de ícone alcoólico. O uísque americano mais vendido do mundo tem um poder de marca enorme. Seu rótulo inspira adesivos de motos e caminhões talvez tanto quanto o do coelhinho da Playboy. A garrafa quadrada e a camiseta preta hoje estão em alta e são queridinhas hipsters. Na moda (a de roupa e a de bebida), houve altos e baixos. Em outros tempos, como nos anos 80 e 90, quando os rivais escoceses eram o que todo mundo queria beber, a empresa mirava nos yuppies.
Embora quem a divulgasse espontaneamente eram cavalheiros como estes:
Além do poderoso arsenal imagético, a Jack Daniel’s alimentou um mito: seu próprio criador. Jack Daniel foi um dos grandes americanos do século 19, cuja vida deixou poucos registros por escrito e, por isso, muito espaço para a destilação de lendas. Ele teria fugido de casa antes dos dez anos e, selfmade man por excelência, durante a Guerra Civil Americana, teria começado a fazer, clandestinamente, uísque – habilidade que teria aprendido ainda jovem por ser o escolhido do poderoso Dan Call.
A própria biografia, mencionada acima, deixa claro que já sabe há muito tempo que a história não foi bem assim. Mas era dessa forma que a empresa a apresentava até pouco tempo atrás.
Em decorrência do aniversário de 150 anos da Jack Daniel’s, a saga oficial sofreu uma guinada em direção à verdade. Pela primeira vez, a destilaria reconhece o papel essencial de Nearis na vida do empresário. Para Krass, é mais uma sacada de marketing genial da marca, que pretende, possivelmente, deixar o grupo blindado de polêmicas sociais e raciais. Em todo caso, é um ajuste de contas histórico. O lendário Jack não aprendeu a fazer uísque por inspiração divina, mas graças a um destilador talentoso negro escravizado.
Isso evidencia a óbvia participação da cultura das pessoas vindas da África na criação de um símbolo americano. Historiadores do uísque americano sempre traçaram as raízes irlandesas e escocesas, mas faltam os detalhes da colaboração negra nessa receita, algo quase sempre marginalizado. Isso pode começar a mudar.
A escravidão e o uísque andaram de mãos dadas e acorrentadas. Esses homens não apenas plantavam milho e carregavam barris para cá e para lá. Eles tocavam todo o processo. Muitos desenvolveram técnicas próprias e receitas secretas, passadas de geração em geração. Nearis não era o único.
Jack Daniel abriu sua destilaria em 1866, um ano após o fim da escravidão. Fotos da época mostram o empresário sentado lado a lado de seus funcionários negros, algo à frente do tempo (em outras fabricantes de bebida, os negros ficavam sempre no fundo, atrás dos protagonistas brancos da imagem).
Às vezes a história pode gerar uma sacada de marketing mais poderosa (e útil, importante, reveladora e humanizadora) do que uma lenda que turva a realidade feito milho destilado.
autor: Felipe Van Deursen
fonte: Superinteressante