“Nós vivemos na era das ‘fake news’. Mas elas não foram inventadas com o Twitter ou o YouTube – foram usadas nos anos 1930 para fazer pessoas reais desaparecerem”, diz Natalia Sidlina, curadora de uma exposição aberta no fim do ano passado no museu Tate Modern, em Londres, chamada “Red Star Over Russia” (“Estrela Vermelha Sobre a Rússia”, em português).
A exposição, lançada no centenário da Revolução de Outubro – e em cartaz até 18 de fevereiro -, tem como tema as poderosas imagens criadas na Rússia e na União Soviética entre 1905 e 1955, inevitavelmente permeadas pela política.
A relevância das imagens hoje é clara. “Nós planejamos a exposição para que coincidisse com o aniversário da Revolução de Outubro, e ainda assim ela parece provocar comparações com o que está acontecendo no mundo agora”, diz o diretor de exposições do Tate Modern, Matthew Gale.
Uma das salas da exposição apresenta um forte contraste entre as explosões de cores e projetos gráficos arrojados que marcam as instalações que estão nas paredes e uma mesa no centro cheia de fotos em preto e branco.
Algumas mostram presos políticos enviados aos Gulags, campos de trabalho forçado, ou condenados à morte durante o período que ficou conhecido como Grande Expurgo, movimento de repressão política capitaneado por Joseph Stalin.
Outras parecem ser um conjunto de fotos de funcionários e estagiários do governo, mas uma observação mais rigorosa revela que eles compõem na verdade uma lista de alvos, com “x” sobre corpos, rostos rasurados e a frase “inimigo do povo” rabiscada em tinta.
Uma série de instantâneos mostra uma linha do tempo de arrepiar a espinha: na primeira foto (acima), Stalin aparece cercado de quatro camaradas; na próxima, datada de 23 anos mais tarde, três deles desapareceram; na terceira, ele aparece sozinho em um cartão postal.
Os que faziam parte do seleto círculo interno que perderam a simpatia do líder foram simplesmente apagados das imagens oficiais: a manipulação fotográfica era chave para reescrever a história soviética. “É uma das nossas preocupações hoje – as imagens são muito convincentes, mas elas também são facilmente manipuláveis”, diz Gale.
Ele vê um paralelo entre algumas das fotos da exposição e o meme do século 21. “A relação entre essas maneiras de tirar as pessoas da história e a imagem ‘photoshopada’ é bem significativa, e um aviso para nós neste momento.
Ela mostra o poder das imagens e, de certa forma, parte da história por trás dessa história que estamos desenhando… é exatamente isso, olhar para o poder das imagens no espaço público e para que tipo de informação elas produzem”.
Apontar e atirar
O tema da influência persuasiva da imagem aparece por toda a exibição – não apenas na sala cheia de fotos, mas também nos banners vibrantes e nas litografias. Muitas vezes era isso o que dava o poder a essas imagens de propaganda, segundo Gale.
“Há uma combinação entre a abstração e a figura concreta, geralmente mas não exclusivamente através da montagem de fotos, que é uma novidade decisiva dos anos 1920 e 1930. A imagem fotográfica reconhecível se mistura com uma composição abstrata – algo que na época é visto, ao mesmo tempo, como compreensível e avant-garde e que hoje continua sendo extremamente influente em termos de design”, diz.
“Mesmo no período dos anos 1930, quando, sob Stalin, o Realismo Socialista se tornou a única modalidade aceitável e as pessoas consideradas avant-garde viviam sob suspeita, ainda assim essa maneira de pensar sobre composição ainda é muito prevalente e empresta dinamismo à forma como as obras eram produzidas naquele período”.
A imagem usada para o pôster da exibição é um bom exemplo disso. “A imagem de Adolf Strakhov da mulher emancipada consegue realizar várias coisas ao mesmo tempo”, diz Gale. “É essencialmente monocromática, mas usa o vermelho de maneira bastante dramática, então de um ponto de vista colorístico, é extraordinário. Tem esse incrível comando gráfico que chega perto do fotográfico – e comunica uma imagem que é fundamental para a forma como a sociedade foi reformada sob os bolcheviques”.
O rosto da mulher passa uma sensação de proximidade, enquanto o fundo dá um sentimento épico. Essa é uma combinação encontrada em muitos outros trabalhos da exposição, que foram cedidos da coleção do designer gráfico David King.
Elas operam em um nível pessoal – tentando convencer os cidadãos soviéticos a apoiar a causa comunista – e ao mesmo tempo exploram ideais coletivos.
Copos cor de rosa
Muitas das imagens em exibição são de mulheres. Segundo Sidlina, o governo usava muitos desses pôsteres em sua estratégia de propaganda para arregimentar apoio no combate ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial.
“Não havia o rosto de Stalin – era muito difícil inspirar as pessoas a irem à guerra e a morrerem pelo líder do Partido Comunista”, diz ela. “Uma imagem de uma mãe ou de uma filha funcionaria muito melhor”.
Ainda assim, a imagem de Strakhov revela algo mais, diz Gale. “Muitas coisas absolutamente horríveis aconteceram, mas a forma como eles se atuaram em relação à igualdade entre os sexos era pioneira na Europa naquela época: dar às mulheres o direito ao voto, pressionar pela alfabetização, por creches – eles eram idealistas, assim como tiranos”.
Essas obras trazem uma importante faceta do idealismo – uma que é ecoada na arte de tempos mais antigos.
“Você só precisa ver a cabeça gigante de Constantino no Museu Capitolino para saber que se trata de propaganda e também de arte extraordinária – ou os tetos pintados a óleo das igrejas católicas”, diz Gale. “O que é fundamental por trás disso é maravilhar as pessoas com imagens muito diretas que podem trazer certeza, ao menos no futuro – de que estamos no caminho certo e de que é isso mesmo”.
Elas também compartilham algo em composição com imagens religiosas.
Segundo Gale, essa linguagem visual “começa com uma população com muito analfabetismo, dependente de imagens, e então isso vira uma iconografia que se repete”. Ele escolhe um entre os vários retratos de Vladimir Lênin. “Quando você olha para a maneira como Lênin é representado, há cerca de seis diferentes poses para ele, e se torna um vocabulário que, por mais que ele pareça ou não a pessoa de verdade, torna-se reconhecível – a iconografia cristã funciona exatamente da mesma maneira”.
É uma estratégia que permitia que imagens criadas por artistas fossem espalhadas entre a população junto a ferramentas de propaganda como “trens agitpro”‘, que eram decorados com murais e viajavam o país disseminando informação com panfletos, filmes e relações públicas.
“Artistas que dedicavam seu trabalho ao apoio do regime viam a arte não mais como algo exclusivo, mas que poderia estar voltado ao povo”, diz Gale.
Arte de rua
“A premissa de fazer arte em primeiro lugar era a de que eles estavam levando seu programa artístico para as ruas. Depois de passar pela excitação da abstração e do construtivismo, pessoas como Aleksander Rodchenko e El Lissitzky se dedicaram para aumentar a disponibilidade disso o máximo possível, com pôsteres, transportes ferroviários, nos vagões, nos jornais e nas revistas.”
Eles fizeram isso em um momento de virada da arte. “Vkhutemas, a escola de arte em Moscou, era dedicada sobretudo ao que eles chamavam de método produtivista, o design por uma causa, em vez de simplesmente para proveito estético, o que está alinhado com a escola de Bauhaus na Alemanha no mesmo período”.
Na União Soviética, esse propósito virou trazer uma imagem apoiada pelo partido – uma mensagem que, de acordo com Gale, poderia “mudar radical e inesperadamente se as pessoa que estavam no poder subitamente perdessem o poder e fossem derrubadas.
Então o apagamento de rostos de pessoas de uma maneira incrivelmente sinistra mostra tanto o poder da imagem como também a importância da política como a condutora por trás da produção desse material”.
Essas mudanças eram aplicadas tanto a artistas quanto aos políticos: em 1938, Gustav Klutsis – que usou fotomontagem no design politicamente carregado de pôsteres e arte de rua – foi preso sob acusações falsas e executado. Sua esposa Valentina Kulagina, outra artista, foi em seguida classificada como “inimiga do povo” e perdeu todas as comissões oficiais que recebia até então.
Ainda que as imagens da exposição sejam impactantes e que seu legado sejam percebi nos dias de hoje, elas não foram necessariamente criadas como obras de arte.
“Está claro que os artistas avant-garde que estavam no centro de muito da atividade nos anos 1920 e 1930 na Rússia estavam conscientemente fazendo propaganda”, diz Gale. “Nós podemos apreciar os movimentos artísticos que moldaram essa cultura visual – mas a política nunca está longe deles. Como disse Sidlina, “isso nos lembra da responsabilidade e do poder da imagem na história”.
autora: Fiona Macdonald
fonte: BBC